sábado, 16 de novembro de 2013

A Sociologia de The Walking Dead


O mundo pós-apocalíptico é um tema clássico da ficção fantástica ocidental. Livros, filmes, séries, entre outros já abordaram esse tema sobre diferentes perspectivas e visões de como seria um mundo onde a civilização humana de alguma forma desmoronasse por completo.
Dentre esses cenários pós-apocalípticos, aquele que acostumamos chamar de “apocalipse zumbi” é um dos preferidos do mundo nerd. O último grande sucesso com essa temática é a série The Walking Dead. Inspirada num HQ publicado nos Estados Unidos pela Image Comics a partir de 2003, escrito por Robert Kirkman, a série foi um sucesso e o canal AMC (quem transmite The Walking Dead) já garantiu contrato para uma quarta temporada.

Mas nós devemos ver além dos zumbis legais, das fugas emocionantes e da extrema violência cômica. As histórias de apocalipse zumbi – assim como todas aquelas que abordam o fim da civilização como a conhecemos – são palco privilegiado para abordamos visões sobre o comportamento social do ser humano.
O sucesso da série foi tão grande, que não faltam artigos na internet que buscam pensar como a série representa questões da humanidade em geral. Porém, a maioria desses textos se prende em aspectos éticos e existenciais de um mundo destruído pelo apocalipse. Nós, como nerds revolucionários, buscaremos um enfoque nas relações sociais e de poder, além das questões existenciais e éticas como reflexo direto da sociedade em que os personagens vivem.

Fim do mundo? É assim que diversos personagens de The Walking Dead descreveram a atual situação do planeta depois da contaminação global que dizimou a grande maioria das pessoas transformando-as em mortos-vivos assassinos. Porém, o planeta fisicamente falando, continuou ali, praticamente intacto. O que assistimos na série é o fim de uma civilização. E não é de uma civilização qualquer. Assistimos em The Walking Dead o fim do capitalismo.
Porém, diferente do que lutaram Mark, Backunin e tantos outros, o fim do capitalismo não foi fruto da ação organizada e coletiva da classe trabalhadora em pró de um sistema igualitário, democrático e livre de verdade. O capitalismo foi destruído, pois toda a civilização foi destruída por um evento biológico mundial. Sendo assim, os personagens da série não vivem na construção de uma nova sociedade, mas sim nas ruinas desta última.
Marx já dizia que todo novo modo de produção contém elementos do antigo. Ou seja, a grosso modo, o feudalismo preservou elementos da antiguidade europeia, assim como o capitalismo preservou elementos do modo de produção feudal. Claro que isso não ocorre de forma mecânica e sim dialética. No caso de The Walking Dead, a preservação de elementos da sociedade destruída é ainda mais forte, já que ela não foi superada por nada, simplesmente ruiu devido a um acontecimento fora do controle da humanidade.
Portanto, vivendo nas ruinas do capitalismo – e mais especificamente, nas ruinas do capitalismo estadunidense - os personagens vão reproduzir as relações com as quais estavam acostumados, adaptadas aos novos tempos. Assim, nos primeiros episódios da primeira temporada é possível perceber claramente a divisão social do trabalho, incluindo todos os preconceitos e questões de classe. As mulheres são responsáveis pelos serviços “doméstico” no acampamento de sobreviventes e os homens pela proteção e por trazer alimentos. Entre os homens há também divisão, pois, para o coreano (ex entregador de pizza) as tarefas são diferentes do que para os homens brancos e tipicamente estadunidense.
Com o passar do tempo, a própria necessidade de sobrevivência num ambiente selvagem e perigoso elimina alguma dessas barreiras sociais quando, por exemplo, na terceira temporada as mulheres passam a ser tão importantes quanto os homens na defesa do “grupo”.
O grupo, como são conhecidos alguns sobreviventes que se juntaram para melhor se protegerem e protegerem sua família passa a ser a representação da sociedade. Ao longo da segunda temporada há cada vez mais evidente um embate político entre parte do grupo que acredita que a defesa desse grupo está acima de tudo e qualquer coisa é plausível para defender esse grupo – chamaremos aqui da “corrente” do Shane (líder desse grupo). E há, por sua vez, aqueles que acreditam que não podemos abandonar valores éticos e humanos só porque a civilização está em ruinas.
A resolução desse embate não podia ter sido mais trágica e emocionante. Dale, o principal representante da “corrente” mais “humanista” convence Rick (personagem principal e líder do grupo) a democratizar uma decisão importante que definiria a vida ou a morte de um garoto “estrangeiro” ao grupo. Apesar do momento mais democrático dessa pequena sociedade, vence a posição defendida pelo Shane decidindo assim matar o garoto. Numa reviravolta impressionante, Dale morre depois de aceitar a derrota na decisão coletiva do grupo, e Shane morre como o traidor que fez tudo por conta própria e tentou matar o Rick.
Esses acontecimentos poderiam fazer com que a “corrente” humanista prevalecesse, aumentando a democratização das decisões do grupo. Porém não é o que acontece. No último episódio, em um momento emblemático, Rick diz: “Não há mais democracia!” e implicitamente ele se colocava como líder supremo do grupo.
Esses elementos vão ser a base para a terceira temporada, que nesse momento ainda está no início, mas já nos dá novos elementos sociais interessantes para trabalharmos. A vitória do pensamento de defesa do grupo acima de tudo é posto como consequência de uma sociedade sem leis, perigosa e caótica, que favorece àqueles que abandonam antigos valores éticos e até mesmo religiosos.
Apesar do grupo tornar-se mais eficiente em termos de sobrevivência, isto também leva a ruina emocional de Rick e sua esposa. Dessa forma, o autor mostra que num mundo sem leis, sem governo e sem as regras sociais subjetivas de uma sociedade de consumo e mercado – ou como eles costumam erroneamente denominar: na anarquia – as relações sociais se deterioram e naturalmente se eleva poderes antidemocráticos.
Ainda mais simbólico que isso é o que acontece com Andrea e a nova personagem: a marcante Michonne. Elas encontram uma ilha de civilização no mundo de caos. Um lugar onde as famílias trabalham, as crianças brincam, e ninguém precisa se preocupar em não ser mordido por um zumbi o tempo todo. Essa sociedade, fortemente defendida por homens treinados e com um arsenal de guerra poderoso, é liderada pelo “governador”. O personagem que não revela seu nome para ninguém é uma figura carismática, bem afeiçoada, a qual todos agradecem pela existência desse pequeno paraíso.
Todos menos Michonne. Ela, acostumada a sobreviver sozinha e desconfiada de tudo e todos é a primeira a perceber que nem tudo era perfeito nesse paraíso. Ao longo dos primeiros episódios logo vemos que o governador controla sua sociedade com mãos de ferro, mesmo que usando luvas de ceda. Ou seja, de forma sutil e carismática, ele garante que ninguém saia ou entre ali sem seu conhecimento e aprovação. Qualquer um que desafia isto, propositalmente ou não, é morto impiedosamente. Para isso ele conta com um pequeno grupo de confiança que conhece um pouco mais do que ocorre nos “bastidores do poder”. Entre eles está Merle, um violento neonazista, com diversas passagens pela prisão e que é responsável pela segurança do local. E também um cientista responsável por diversos experimentos com zumbis. Como se não bastasse, á também o dia do festival, quando “gladiadores” se espancam numa arena cercada de zumbis (sem dentes e mandíbulas), para a diversão da população.
Assim, do caos nasce o fascismo. Um líder forte e carismático, hierarquia inquestionável, sociedade altamente militarizada e fortemente controlada e, é claro, um grupo próximo de colaboradores inescrupulosos e leais como um cachorro. Ou seja, quando ruiu o Estado liberal, o mercado e o capitalismo, quando o mundo entrou na “anarquia” (Ou no que eles pensam ser a anarquia) a consequência foi o fascismo. Se os valores da propriedade e da família são arruinados, a natureza humana vai gerar sociedade autoritárias e ditatoriais (“Veja a URSS!” dirão alguns).
Ainda nessa linha de pensamento, é interessante vermos que Michonne, a Self Made Man/Woman, solitária, individualista foi a única que percebeu a maldade da falsa sociedade perfeita e a máscara do “governador”. Uma sobrevivente do pensamento liberal nas ruinas da civilização.
Será, então, que a ascensão do fascismo e de regimes autoritários em geral é fruto simplesmente da falência do liberalismo e de seu modelo de Estado? E não é assim que aprendemos na escola? Devido a crise da década de 1930, o fascismo chegou ao poder na Alemanha, Itália, Espanha e Portugal. Explicação boa para quem quer desvincular essas ideologias do capitalismo.
 Portanto, é importante afirmamos aqui que o fascismo é capitalista. Em todos os países em que essa ideologia chegou ao poder, foi amplamente apoiada pelos grandes empresários nacionais, que aplaudiam emocionados os discursos de Hittler, vendo seus bolsos cheios e seus operários controlados e pacificados. Sabemos que não é o capitalismo liberal que tanto amam democratas e republicanos nos Estados Unidos, mas ainda assim garantiu a sobrevivência de um sistema econômica baseado na exploração do homem pelo homem e na propriedade privada dos meios de produção. Sendo assim, não há nenhuma contradição de classe, quando os empresários apoiam e financiam regimes ditatoriais (não só fascistas, como também os regimes civis-militares na América Latina), pelo contrário, esses regimes garantiram a manutenção de sua classe no mais alto posto da hierarquia social.
Então porque não dizermos que a ascensão de regimes autoritários e fascistas não é fruto do próprio regime capitalista liberal, só que melhor adaptado à uma conjuntura específica? Até porque o Estado liberal não deixa de ser autoritário e antidemocrático quando o assunto é a autopreservação de seus privilégios. O Estado mínimo, que não deve intervir na economia, tem grande força para impor a ordem social contra qualquer questionamento dos de baixo.
Assim, o que o “governador” está tentando fazer num mundo pós-apocalipse zumbi é garantir a preservação da sociedade que ele conheceu, readaptada aos novos tempos. Não precisamos destruir toda a civilização com um vírus mortal que transforme as pessoas em mortos-vivos, para defendermos esse ponto de vista. Basta analisarmos algumas grandes tragédias que assolaram a humanidade. Uma delas em particular é bastante exemplar para o que estamos tratando: a destruição do furacão Katrina que destruiu Nova Orleans no sul dos Estados Unidos.
Depois que a cidade foi completamente varrida pelos ventos do furacão e depois pela inundação provocada por um dique partido, a assistência governamental agiu de forma absolutamente lenta no envio de ajuda aos atingidos pela tragédia (diferente de quando um fenômeno natural desses atinge o norte rico, como vimos no Sandy). A consequência disso foi alguns dias de falta de governo, falta de estrutura e paralização das relações comerciais - não muito diferente do que assistimos em The Walking Dead – o que gerou inúmeros saques, além do aumento da violência que em Nova Orleans alcançou níveis alarmantes desde a tragédia.
Numa sociedade que estimula o individualismo, o consumismo e a competitividade como valores do que é ser “Americano”, quando as leis e instituições que garantem minimamente a convivência social (mesmo que através da alienação e da repressão) simplesmente somem, a consequência disso é a exacerbação desses sentimentos ao invés do esforço coletivo. E, em meio ao caos e a violência, um homem, ou ideologia que promete a pacificação em troca de lealdade e subserviência torna-se tentadora.



http://g1.globo.com/Noticias/0,,MUL840609-15525,00-NOVA+ORLEANS+E+MAIS+VIOLENTA+QUE+AS+GRANDES+CIDADES+BRASILEIRAS.html      


http://sociologiamelhormateria.blogspot.com.br/2012/10/the-walking-dead-e-sociologia.html

5 comentários:

  1. Rapaz, o artigo é ótimo. Você está de parabéns!

    ResponderExcluir
  2. MUito bom vai virar conteúdo de aulas em breve!!!!

    ResponderExcluir
  3. Valeu gente. Dá para perceber que escrevi tem um tempo. Não me debrucei sobre os novos acontecimentos dos episódios mais recentes. Mas podem partir daí, quem quiser

    ResponderExcluir